
O Haiti e a República Dominicana compartilham a Ilha de São Domingos, mas enfrentam um sério conflito em relação ao uso das águas do rio Dajabón, que forma a maior parte da fronteira entre os dois países. Enquanto as populações de ambas as nações são aproximadamente equivalentes, o Haiti enfrenta uma grave crise de insegurança alimentar. O governo dominicano, de orientação ultradireitista, busca inviabilizar um canal essencial para a irrigação das lavouras haitianas.
O rio Dajabón, conhecido como Rio Massacre no lado haitiano, tem 55 km de extensão sob domínio dominicano e apenas 1,9 km sob domínio haitiano. Em 2013, movimentos populares e sindicatos haitianos começaram a discutir a construção de um canal para irrigação, em resposta a uma seca que afetava as colheitas.
Guillaume Josephat, integrante do movimento KPSKBM (Coordenação dos Plantadores da Seção Comunitária de Bas-Maribaroux), destacou que o desvio da água do rio, promovido pela República Dominicana, é uma prática que compromete a agricultura de cerca de 60 mil famílias no Haiti. “Essa água é uma conquista do povo”, afirmou ele.
Uma visita ao canal em junho revelou que, do lado haitiano, a população utiliza o local como espaço de lazer, enquanto do lado dominicano, um muro e soldados armados reforçam a segurança. As obras de construção do canal começaram em 2019, mas foram interrompidas em 2021 após o assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse. Em 2023, moradores das cidades de Ferrier e Ouanaminthe retomaram a construção.
Josephat relatou a intensificação da repressão dominicana, que começou com campanhas de difamação e culminou com o fechamento da fronteira e tentativa de sabotar as obras. “Defendemos o canal com nosso sangue, destruindo as bombas d’água”, afirmou ele, ressaltando a falta de apoio do governo haitiano.
O presidente dominicano, Luis Abinader, insatisfeito com os avanços das obras, fechou as fronteiras entre os países. No entanto, a construção do canal se tornou uma questão de orgulho nacional para os haitianos, que conseguiram abrir o canal em abril de 2024, financiados por pela diáspora haitiana.
A necessidade de um sistema de irrigação é crítica para combater a fome que atinge a população haitiana. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) indicou que cerca de 5,4 milhões de haitianos enfrentam fome aguda, incluindo 2 milhões em situação de emergência. A insegurança e a violência em Porto Príncipe deslocaram centenas de milhares, aumentando o número total de deslocados internos para mais de 700 mil.
O Programa Mundial de Alimentos distribuiu assistência a 1,35 milhão de pessoas em 2024, oferecendo apoio emergencial e refeições escolares. A FAO enfatizou a necessidade urgente de ajuda agrícola para as famílias afetadas e deslocadas devido à grave situação que vive o Haiti, o país menos desenvolvido das Américas.
Por outro lado, a República Dominicana argumenta que um acordo de 1929 assegura o direito exclusivo ao uso das águas do rio. Segundo o governo dominicano, o uso das águas haitianas traria risco ao acesso hídrico de agricultores dominicanos. Um comunicado oficial acusa os haitianos de promoverem unilateralmente a construção do canal sem respaldo governamental, atribuindo a responsabilidade das obras a gangues armadas no Haiti.
Josephat destacou que, embora haja alegações de que o canal prejudique a zona franca dominicana no Haiti, essa é uma tentativa de manipular a narrativa e encobrir os interesses econômicos em jogo.
Atualmente, o canal tem capacidade de transportar 1,5 metro cúbico de água por segundo e abrange 3 mil hectares de terra cultivável onde são cultivados arroz, cenoura, mamão, entre outros. A construção de mais canais secundários é uma das metas futuras, assim como aprimorar os mecanismos de proteção em casos de enchentes ou secas.
Apesar da luta pela irrigação, os ativistas temem novas tentativas de sabotagem por parte da República Dominicana, que poderá alegar que o canal prejudica suas zonas francas, onde a mão de obra haitiana é utilizada. “A necessidade de um governo forte que defenda nossos interesses é clara”, concluiu Guillaume.